Câmara Técnica de Recursos Hídricos
Os Comitês de Bacias Hidrográficas e a Gestão das Águas
Luiz Antonio Timm Grassi
Documento elaborado para a Assessoria de Imprensa do CREA-RS em abril de 2001, com perguntas formuladas pelo Jornalista Elson K. Schoreder.

1 – O que são e para que servem os Comitês de Bacias Hidrográficas?
Os Comitês de Gerenciamento de Bacia Hidrográfica são organismos colegiados instituídos pelo Poder Público, com base na Lei 10.350/94, como parte do Sistema Estadual de Recursos Hídricos, com atribuições específicas no gerenciamento dos usos e da conservação da água e dos corpos hídricos, tendo como base de planejamento e gestão a bacia hidrográfica.

2 – Como eles foram formulados?
Os comitês (e o Sistema) têm como referência e modelo experiências estrangeiras, particularmente a da França. No Brasil, a partir do marco constitucional (todas as águas são públicas, de domínio federal ou estadual), houve iniciativas da União e de alguns estados, a partir da década de 70. Os primeiros comitês de bacias de rios estaduais surgiram no Rio Grande do Sul, em 1988 (Comitê da Bacia do Sinos) e 1989 (Comitê Gravataí) e da experiência desses dois, foi formulada a Lei que instituiu o Sistema Estadual e os comitês em todo o estado.

3 – Por que foram criados?
Na origem da criação dos primeiros comitês gaúchos está a preocupação das comunidades e de grandes usuários da água com a crescente escassez provocada por problemas de ordem qualitativa (poluição) e/ou de ordem quantitativa (retiradas cada vez maiores). A gestão dos recursos hídricos, como uma política pública envolvendo todos os usuários e a população, foi um passo necessário para superar o enfoque de atacar apenas os efeitos localizados da poluição e da demanda crescente. A bacia hidrográfica é a unidade ideal para a aplicação regionalizada dessa política, pois é a unidade natural dos recursos hídricos. O enfoque de planejamento e o uso de instrumentos de gestão, como a outorga do direito de uso da água e a cobrança pelo mesmo uso garantem, nos países em que são aplicados, resultados efetivos na recuperação e na conservação dos recursos hídricos e no melhor compartilhamento dos mesmos.

4 – Quais são seus objetivos?
Os comitês são conhecidos como os Parlamentos da Água, nas respectivas bacias. Isso significa que sua função é, basicamente, deliberativa, com poderes para decidir sobre questões bem definidas na Lei 10.350/94. Além disso, atuam como fóruns de debate sobre questões afins aos usos dos recursos hídricos, sempre entendidos como bens ambientais (portanto intrinsecamente vinculados aos demais componentes ambientais), como bens sociais (dada a importância da água e dos cursos de água em todas as manifestações de vida coletiva) e como bens econômicos (em função de sua escassez cada vez maior e pelo valor que a água tem no processo produtivo). O objetivo dos comitês de bacia é estabelecer metas (sejam qualitativas, sejam quantitativas) socialmente consensadas (tanto por usuários quanto pela população da bacia), a serem atingidas pela execução dos chamados Planos de Bacia, nestes incluídos prazos, custos e fontes de recurso. A cobrança pelo uso da água é a mais importante dessas fontes de recursos, com critérios e valores a serem aprovados pelo respectivo Comitê.

5 – Qual é a lei que os criou e o que diz (genericamente)?
Os Comitês foram criados (ao lado de outras instâncias do Sistema Estadual de Recursos Hídricos) pela Lei 10.350, de 30 de dezembro de 1994, a qual regulamentou o Artigo 171 da Constituição do Rio Grande do Sul. Essa lei, conhecida como a Lei das Águas:
– estabelece os objetivos, princípios e as diretrizes da política estadual de recursos hídricos;
– cria o Sistema, definindo objetivos e instituições;
– trata dos instrumentos de planejamento (Plano Estadual e Planos de Bacia) e dos instrumentos de gestão (outorga e cobrança pelo uso da água).
Ao lado dos Comitês, a Lei 10.350/94 instituiu o Conselho de Recursos Hídricos, o Departamento de Recursos Hídricos (funcionando na Secretaria Estadual de Meio Ambiente), as Agências de Região Hidrográfica (ainda não criadas) e ainda considera como parte do Sistema a Fundação Estadual de Proteção Ambiental (FEPAM).

6 – De que forma os profissionais estão participando?
A implantação da outorga, como instrumento gerencial, está em processo de preparação pelo Departamento de Recursos Hídricos, com participação da FEPAM. Certamente hidrólogos e hidrogeólogos terão parte importante no processo, nos aspectos relativos às demandas quantitativas. Da mesma forma, profissionais das áreas ligadas à biologia, química e ao saneamento ambiental serão indispensáveis em aspectos das questões de qualidade.

7 – Quem participa dos comitês (e em que percentagem)?
Os Comitês são integrados por representantes de instituições (e não participantes individuais). A Lei 10.350/94 determina que todo Comitê tenha 40% de seus integrantes representando os diferentes usos da água na bacia, 40% representando a sociedade da bacia e 20% representando o Poder Público Estadual e Federal (os dois níveis que detêm o domínio das águas no Brasil). O número total de integrantes é definido, por Comitê, no processo de sua formação, variando atualmente entre 35 e 50 entidades representadas (ver Quadro 1).

8 – Como se participa?
No processo de formação de cada Comitê (com duração de dois ou três anos), a comunidade regional discute e decide qual composição básica refletirá melhor as características de usos e de organização social da região (bacia hidrográfica). Ao criar legalmente o Comitê, o governo do Estado promove processo público entre as entidades interessadas, e eleição daquelas que vão assumir as vagas por um período de dois anos. A eleição é feita por categorias (por exemplo: as entidades interessadas e inscritas na categoria de usuários industriais da água elegem titulares e suplentes correspondentes ao número de assentos que, naquele comitê, é reservado para a categoria).
Os comitês têm reuniões ordinárias periódicas (mensais ou bimensais, conforme o comitê) e grupos de trabalho ou comissões que desenvolvem atividades específicas (sempre dentro da orientação de que o comitê não é um órgão executivo nem fiscalizador, mas deliberativo, opinativo e articulador). Cada comitê elege, bianualmente, um presidente e um vice-presidente (dentre os representantes dos usuários ou da população) e o presidente indica um secretário executivo. A diretoria eleita é auxiliada por uma Comissão Permanente de Assessoramento (CPA).
Qualquer entidade interessada em participar de um Comitê de Bacia deve acompanhar as atividades do mesmo e inscrever-se na oportunidade de uma eleição. Independentemente disso, todas as atividades de um Comitê são abertas e, muitas vezes, há reuniões e grupos de trabalho onde a participação é possível.

9 – O que é a outorga da água?
A outorga do direito ao uso da água é a emissão, por parte do Poder Público, de documento permitindo o uso da água ou de corpos de água por usuários privados ou públicos, estabelecidas as condições desse uso, seja do ponto de vista do outorgante ou do outorgado. Em outras palavras, trata-se de regularizar a apropriação de um bem público que se torna escasso, de forma a garantir tanto a repartição do mesmo entre diversos usos e usuários quanto a permanência futura desses usos e a conservação ambiental. Para que a outorga possa ser feita adequadamente e dentro de seus objetivos, é necessário o conhecimento das condições hidrológicas (disponibilidade) e das necessidades de cada usuário, de maneira que cada outorga individual esteja referenciada a um contexto maior e subordinada a critérios de prioridades, limitações, etc.

10 – Qual o papel dos comitês na questão da outorga da água?
O papel essencial dos comitês, na outorga, se dá na formulação e aprovação do Plano de Bacia, quando são estabelecidos os critérios específicos para a outorga em cada bacia. Esses critérios (hierarquização de usos, por exemplo) são condições prévias a serem obedecidas pelos órgãos outorgantes (DRH e FEPAM) para o atendimento rotineiro dos pedidos de outorga. Uma vez estabelecidos, os comitês não precisam tomar conhecimento de cada pedido particular. Os comitês detêm, entretanto, legalmente, a atribuição de "compatibilizar os interesses dos diferentes usuários da água, dirimindo, em primeira instância, os eventuais conflitos". Isso indica que eventuais controvérsias na aplicação da outorga poderão ser trazidas ao comitê para sua deliberação.

11 – Como será feita a cobrança pelo uso da água e quando será implantada?
A cobrança, que não será um imposto nem uma taxa, mas tem características de um preço público aplicado a retiradas de água e a lançamentos de despejos, tem duas finalidades: servir de incentivo ao melhor uso da água (instrumento de racionamento e de racionalização do uso) e ser canalizada para a formação de um fundo "condominial" para aplicação em empreendimentos e ações que visem à recuperação da qualidade, a melhoria da oferta quantitativa e formas mais racionais de uso. Tanto os valores da cobrança quanto os critérios de aplicação dos recursos arrecadados deverão ser definidos no Plano de Bacia, pelo respectivo comitê. A Lei proíbe a cobrança "sem que sua aplicação esteja assegurada e destinada no Plano de Bacia Hidrográfica". De outra parte, também assegura a Lei que "os responsáveis pelos lançamentos não ficam desobrigados do cumprimento das normas e padrões ambientais".
Outro pré-requisito para o início da cobrança em uma bacia é a implantação da outorga.

12 – Como foi feita a divisão dos comitês no estado?
A Lei 10.350/94, a partir da realidade hidrográfica do Estado, dividiu o RS em três regiões hidrográficas ("grandes bacias"): Guaíba, Uruguai e Bacias Litorâneas. Ao mesmo tempo, previu uma posterior subdivisão em "Bacias Hidrográficas" (cada uma com um comitê a ser criado por decreto específico). A partir de um estudo realizado por um grupo interinstitucional no âmbito da antiga Comissão Consultiva do Conselho de Recursos Hídricos, em 1995/96, foi feita uma proposta de divisão do estado em 21 bacias. No processo de formação dos comitês, essa proposta foi sendo discutida pelas comunidades e alterada, em alguns casos. Sendo um comitê de bacia um organismo de gerenciamento, a realidade geográfica (hidrográfica) e a realidade social devem estar compatibilizadas. Hoje, o Estado está dividido em 23 bacias, das quais 12 já contam com comitês constituídos e em várias outras há Comissões Provisórias preparando futuros comitês¹.

13 – Como está a organização dos comitês no RS e no restante do país?
O RS está com praticamente todos seus comitês instalados ou em fase de instalação. Outros Estados, como São Paulo e Ceará também contam com muitos comitês. A situação varia de Estado para Estado, mesmo porque as legislações estaduais têm diferenças bem significativas. Os comitês de todo o país já realizaram dois encontros nacionais e preparam o terceiro, sob a égide do Fórum Nacional dos Comitês de Bacia (atualmente coordenado pelo ComitêSinos). No RS, temos o Fórum Gaúcho dos Comitês, coordenado pelo Comitê Lago Guaíba. Os fóruns constituem instâncias não oficiais de troca de experiências e de fortalecimento dos sistemas estaduais e nacional de recursos hídricos.

14 – Como está a relação dos comitês com a ANA (ao que parece o governo federal está querendo enfraquecer os comitês)?
Agência Nacional de Águas – ANA – é organismo federal com ingerência direta sobre as águas de rios federais (aqueles que delimitam fronteiras com outros países ou limites entre estados e aqueles que transpõem limites fronteiriços ou interestaduais). Sua ação está definida pelas Leis 9.433/87, que institui o Sistema Nacional de Recursos Hídricos e 9.984/00, que a criou. Tem atribuições referentes à outorga e à cobrança em águas federais e não em águas estaduais. Outras atribuições referem-se à aplicação da política de recursos hídricos no território nacional (portanto devendo levar em conta as relações de continuidade entre as águas federais e estaduais).
Alguns pronunciamentos à imprensa causaram a impressão de que autoridades da ANA podem não estar interpretando corretamente o papel da mesma e a maneira de implantar o Sistema Nacional de Recursos Hídricos e seus instrumentos. Entretanto, não se pode dizer que a ANA pretenda enfraquecer os comitês, na medida em que, ao menos oficialmente, está sendo estimulada a criação de comitês de bacias de rios federais. Quanto aos comitês de bacias estaduais, cada estado tem autonomia para sua formação. Estes não dependem da ANA. Seria interessante, e os comitês procuram contribuir para isso, tanto no âmbito do Conselho Nacional de Recursos Hídricos (órgão superior da política das águas, no Brasil), quanto em articulações no plano federal, que a ANA assumisse a posição de fortalecer um sistema de gerenciamento dos recursos hídricos democrático, decentralizado e participativo, como o são os sistemas que estão sendo implantados em alguns estados, como no Rio Grande do Sul.
¹Atualmente estão previstos 24 Comitês, estando criados 16 (fev2004).

15 – Que enfoques estão sendo trabalhados?
Pode-se dizer que os comitês têm dois tipos de atuação.
O primeiro é o cumprimento obrigatório de suas atribuições legais (centralizado em todas as ações visando à elaboração e à execução do Plano de Bacia, com ênfase para a correta aplicação dos instrumentos de gestão – a outorga e a cobrança). No cumprimento dessa tarefa, o comitê deve contar, necessariamente, com a participação das demais instâncias do Sistema (CRH, DRH, ARH, FEPAM). Ou seja, para que o comitê funcione plenamente, nessa linha, é preciso que o Sistema de Recursos Hídricos esteja plenamente implantado e em funcionamento.
O segundo tipo de atuação poderia ser chamado de complementar ou acessório. Trata-se do interesse do comitê por todas as questões que interessem ao gerenciamento dos recursos hídricos da bacia e da sua presença em todas as atividades relacionadas com o mesmo. Nesse sentido, os atuais comitês têm trabalhado com questões relacionadas à educação ambiental, a usos setoriais, a conflitos de usos, ao licenciamento ambiental de grandes empreendimentos, a planos de desenvolvimento regional, etc.

Quadro 1 – (exemplo de composição de comitê de bacia)

COMPOSIÇÃO DO COMITÊ DA BACIA DO LAGO GUAÍBA

GRUPO USUÁRIOS
Categoria Abastecimento Público 4
Categoria Agropecuária 2
Categoria Indústria 2
Categoria Esgotamento Sanitário 2
Categoria Drenagem Urbana 2
Categoria Turismo, Esporte e Lazer 1
Categoria Efluentes Líquidos Provenientes de Resíduos Sólidos 1
Categoria Pesca Artesanal, Comercial e Aqüicultura 1
Categoria Navegação 1
Subtotal 16
GRUPO POPULAÇÃO
Categoria Legislativos Municipais 4
Categoria Organizações de Ensino Superior e Pesquisa 2
Categoria Associações Técnico-Científicas e Classistas 2
Categoria Organizações Ambientalistas 4
Categoria Organizações Comunitárias e Clubes de Serviço 3
Categoria Organizações Sindicais 1
Subtotal 16
GRUPO ÓRGÃOS PÚBLICOS
Órgãos Públicos Estaduais 7
Órgãos Públicos Federais 1
Subtotal 8
Total 40
Obs.: O III Encontro Nacional de Comitês de Bacia, referido na 13ª questão, foi realizado em Belo Horizonte, de 17 a 20 de junho de 2001. O IV Encontro foi realizado em Balneário Camboriú, SC, em 2002 e o V Encontro, em Aaracaju, Se, em 2003
Volta