DIREITO À ÁGUA
Luiz
Antonio Timm Grassi
1. O direito
aos usos das águas da natureza
A existência
da água sob os três estados físicos e em constante mutação dentro de um ciclo
hidrológico tornou possível a vida no planeta Terra.
Além de ser essencial
à vida e à saúde humanas, a água é indispensável ao equilíbrio ecológico e ao
desenvolvimento social.
Componente
ambiental básico, sem a água nosso planeta não seria a morada de todas as
formas de vida conhecidas. A vida vem das águas, sabemos. As águas, pelo ciclo
hidrológico, possibilitam e mantêm a vida.
Além disso, as
águas sempre foram indispensáveis para o desenvolvimento social e cultural da
humanidade. Assim como foram fontes de civilizações, pela sua presença, sua
carência causou declínio e desaparecimento de culturas.
Hoje, com o
crescimento demográfico e econômico, multiplicam-se os usos das águas e crescem
rapidamente suas demandas, embora a quantidade global disponível seja sempre a
mesma. Abastecimento humano, dessedentação de animais, indústria, agricultura,
navegação, geração de energia elétrica, pesca, esportes, diluição e biodegradação de esgotos urbanos e industriais e outros mais são usos que estão se intensificando
cada vez mais tanto global quanto localizadamente.
Ao lado disso,
a distribuição espacial das águas não é uniforme: desde as regiões desérticas
até as zonas úmidas, há toda uma disparidade na presença da preciosa
substância.
Ainda mais, na
maior parte do planeta, o próprio dinamismo do ciclo hidrológico que contribui
para a renovação contínua da vitalidade planetária (ciclos de periodicidade
variável de chuvas e estiagem, enchentes e secas) acarreta também a ocorrência
de falta ou de excesso ao longo do tempo. Em outras palavras, não há segurança
de que se tenha água na quantidade adequada onde e quando ela é necessária.
Há, portanto,
uma tendência de escassez global, devido à quantidade limitada frente aos usos
crescentes e a ocorrência de escassez localizada permanente em algumas regiões
e temporária em outras (assim como excesso temporário também pode afetar muitos
usos). A escassez localizada, confrontada com usos crescentes na mesma região,
tende a agravar-se.
Por outro
lado, temos que considerar que a água é um meio receptivo à dispersão de outras
substâncias e que os corpos de água são recipientes naturais de quaisquer
materiais carregados do solo ou lançados diretamente. Assim sendo, estão sujeitos a alterações majoritariamente negativas de qualidade, o
que se traduz como poluição.
Como o estado
físico e a qualidade são determinantes da possibilidade de aproveitamento para
cada uso (por exemplo, para o abastecimento humano ou para balneabilidade a
condição qualitativa é bastante restritiva), não basta ter água disponível, em
determinado lugar, em grande quantidade: é preciso que tenha a qualidade
compatível com os usos que se quer. Pode-se ter. portanto, a escassez produzida
pela falta de qualidade adequada a determinados usos.
Configurada a
situação de escassez (efetiva, localizadamente, ou potencial; permanente ou
sazonal), cabe reconhecer que as águas naturais não podem ser consideradas mais
como um bem inesgotável, “livre” (no sentido dado pela ciência econômica), mas
sim limitado na confrontação de sua disponibilidade com suas demandas, portanto
um “bem econômico”. Esse reconhecimento não implica nenhum tipo de
desqualificação da importância ambiental e social das águas e dos corpos
hídricos. Ao contrário, da enunciação das águas naturais como bem econômico
(escasso) se infere que não se está mais na situação de disponibilidade
absoluta para todos os usuários, simultaneamente, em qualquer circunstância,
sem que um uso interfira com outros, competindo com eles ou até
inviabilizando-os: em um número crescente de casos, o uso da água de um rio, de
um lago ou de um aqüífero implica compartilhamento, com as conseqüências e
responsabilidades daí decorrentes. Reconhecer clara e explicitamente o caráter
econômico do bem água em todas suas formas de ocorrência na natureza é passo
importante para impedir ou evitar a apropriação arbitrária do mesmo sob os
pretextos de “dádiva da natureza” ou do princípio de antecedência (“o usuário
que chegou primeiro tem direito garantido”).
O quadro
descrito gera a concorrência e competição entre os usos, provocando problemas internos aos
setores usuários e entre os diversos concorrentes.
Todos deveriam
reconhecer que dependem de um patrimônio comum: as fontes de suprimento –
mares, rios, lagos, nascentes, lençóis subterrâneos, aqüíferos e até geleiras e
gelos polares, mas a noção tradicional de que a água é inesgotável e os corpos
da água são imperecíveis mantém e reforça a atitude predatória e perdulária.
Continua o desperdício e a agressão aos corpos de água. Mesmo o reconhecimento
da escassez não conduz automaticamente a atitudes solidárias. Ao contrário, há
cada vez mais disputas e conflitos pelo uso da água.
Não basta,
portanto, que as águas que ocorrem no planeta sejam consideradas como bem
econômico.
Como tal, é
preciso verificar se pode ser enquadrado como bem privado ou público. Dois
tipos de considerações definem a questão: primeiro, a importância ambiental e
social da água, sua essencialidade para a vida e para as atividades humanas
clamam pela qualificação como bem público; em seguida, as próprias
características naturais (ocorrência em um ciclo hidrológico dinâmico e
permanente, que associa fluidez, mudanças de estado físico e interação com
outros meios ou substâncias) fazem com que não se enquadre nos princípios
consagrados pela ciência econômica para definir um bem privado – “rivalidade no
consumo” (somente um consumidor pode usufruir do bem,
a cada vez) e “exclusão” (quem não paga pode ser excluído do benefício). Assim,
as águas devem ser, necessariamente, reconhecidas e proclamadas como bem
econômico público.
Reforçando essa
qualificação, a situação mencionada antes de competição e conflito clama pela
intervenção de um poder superior, socialmente representativo que faça a
intermediação, arbitrando o atendimento dos interesses conflitantes e superando
a simples supremacia da força. Em outras palavras, existe a necessidade de uma
gestão pública exercida pelo Estado, que zele pela conservação quantitativa e
qualitativa das águas e pela racionalidade dos usos e seu justo
compartilhamento.
Esse parece
ser o entendimento predominante no cenário mundial, hoje em dia, seja nos
contextos nacionais, seja por parte de organismos internacionais.
Em resumo:
- a água é um bem essencial à vida e à sociedade
- a água, no planeta Terra, é limitada
- face aos usos, a água da natureza- é
escassa e, portanto, é um bem econômico
- a água é um bem público
- é necessária a gestão pública das águas da natureza que
contemple a proteção das fontes naturais, a conservação quantitativa e
qualitativa da água e o seu uso racional e justamente distribuído.
1.1. O direito
aos usos das águas no contexto nacional
Das
considerações acima, decorre, em nosso País, a adoção de princípios
constitucionais (pela Constituição do Brasil, todas as águas da natureza são
públicas, parte de domínio federal, parte de domínio dos Estados). Portanto, no
Brasil, não há águas privadas ou particulares nem as mesmas pertencem a todos,
indistintamente. Não é reconhecida propriedade privada sobre rios, lagos, água
subterrânea. São bens do Estado (União e Estados membros), sendo que a União,
também por determinação constitucional ficou obrigada a “instituir sistema
nacional de gerenciamento de recursos hídricos e definir critérios de outorga
de direito de seu uso” (Art. 21,XIX). Trata-se de
obrigar o Poder Público, como mandatário da sociedade, a zelar por esse bem
público, administrando sua conservação e seus usos de forma ambiental e
socialmente sustentável. É o que vem sendo feito por meio dos “sistemas
nacional e estaduais de gestão dos recursos hídricos”, cuja regulamentação pela
Lei Federal 9433/97 e pela leis estaduais correspondentes (no Rio Grande do
Sul, Lei 10.350/94) adotou os princípios de descentralização e participação da
sociedade como cogestora.
Todas as formas de uso das águas dependem, portanto, de uma autorização legal para sua efetivação (a outorga), a qual, no contexto da gestão participativa deve explicitar as responsabilidades mútuas de outorgante e outorgado, deste para com os demais usuários e com relação à conservação do bem, não atribuindo perpetuidade nem poder de transferência mercantil para terceiros. Cabe, também, ao Poder Público outorgante aplicar as regras aprovadas pelo colegiado cogestor (Comitê de Bacia Hidrográfica) para hierarquizar os usos, considerando, em todos os casos, por determinação legal, o uso para abastecimento humano como o prioritário sobre todos os demais.
Além disso, o sistema adotado pela União e pelos Estados para a gestão de suas águas respectivas, tendo as bacias hidrográficas como unidade de planejamento e ação, prevê os planos de bacias e os planos estaduais e nacional como eixos norteadores do processo. Prevê ainda a aplicação, além da outorga, como instrumento de controle, da cobrança pelo uso da água, através de um preço público, como instrumento econômico de racionamento (combate à escassez) e racionalização de usos. Observe-se que este preço público não se confunde com as tarifas de abastecimento de água potável e do serviço de esgotamento sanitário e sua aplicação depende da deliberação dos próprios usuários, assim como da garantia da aplicação dos recursos gerados para a execução do plano de cada bacia. No caso do Rio Grande do Sul, a Constituição Estadual é taxativa ao determinar que os recursos oriundos da cobrança pelo uso da água devem ser aplicados exclusivamente na própria bacia hidrográfica.
Com base na
explanação acima, podemos afirmar:
- no contexto nacional, todos têm direito de
acesso e uso às águas da natureza e de suas fontes, desde que respeitada sua
condição de bem público e as normas legais daí decorrentes, devendo ser os
interesses privados ou setoriais subordinados aos interesses sociais e
ambientais;
- a conservação das águas e de suas fontes de suprimento
naturais, assim o compartilhamento justo dos seus usos deve ser garantido pela
gestão pública competente, dando cumprimento aos preceitos legais e com a
participação ativa da sociedade;
- os sistemas nacional e estaduais de
gestão dos recursos hídricos são os instrumentos legítimos e válidos
para efetivar os princípios constitucionais e garantir os direitos da cidadania
com relação às águas
1.2. O direito
às águas no contexto mundial
Diferentes autores estimam que o Brasil seja detentor de 8 a 16% da água doce (superficial e subterrânea) ocorrente no planeta. Apesar de uma distribuição desigual, a situação nacional é privilegiada em relação à maioria dos países.
Seja por
condições naturais, seja pelas condições específicas de desenvolvimento
histórico, a escassez quantitativa de água e aquela causada pela poluição e
pela deterioração dos corpos hídricos aflige presentemente diversas regiões e
nações em todos os continentes. A crescente demanda originada pelo aumento
populacional e pelo crescimento econômico (ainda, em sua quase totalidade
baseada em uma economia desligada dos princípios da sustentabilidade ambiental)
tem feito com que as águas especialmente a água doce, que é a
parte mínima ocorrente no planeta, e seus mananciais seja, cada vez
mais, objeto de preocupação, considerações e até ações preventivas, por parte
de governos, corporações econômicas e organizações não governamentais. Desde
algum tempo, a literatura especializada e a imprensa vêm apresentando a idéia
de que a disputa pela água poderá ser o grande conflito do século XXI.
Sem dúvida, as
águas (em todas suas ocorrências, nos mares, na superfície dos continentes, no
subsolo, nas geleiras polares) devem ser consideradas um dos mais importantes
patrimônios comuns da humanidade. Com base nos argumentos anteriormente
apresentados, deve-se descartar sua qualificação como bem privado ou mercadoria.
Para todo o planeta deveria vigorar o estatuto de bem público – o que não
ocorre ainda, em diversos países. A apropriação privada dos
corpos hídricos de qualquer espécie e a transformação da água em uma commodity deveriam ser banidos das leis
nacionais assim como das normas do direito internacional.
Mesmo que a
água e os corpos hídricos passassem a ser reconhecidos
mundialmente como bens públicos, restaria ainda o encaminhamento das formas de
gestão a ser adotada. Além dos casos de águas nitidamente compartilhadas por
todos os povos, como as águas oceânicas e polares, temos duas outras situações:
águas superficiais ou subterrâneas compartilhadas por duas ou mais nações e
águas estritamente nacionais (interiores desde sua origem). Nos dois primeiros casos,
urge que a comunidade internacional discuta normas para proteção e conservação
do patrimônio, assim como do uso eqüitativo e sujeito a critérios de interesse
social e ambiental. Obviamente, será da maior importância a
definição princípios internacionais que passem a nortear as políticas públicas
das águas e que vigorem efetivamente em escala mundial.
É também
importante que haja a maior
aproximação e compatibilização entre as formas nacionais de gestão,
particularmente entre aquelas nações que compartilham águas interiores.
Tanto no caso
de águas compartilhadas quanto (de modo especial) no de águas estritamente
nacionais, é da maior importância que seja ressaltada a responsabilidade das
nações envolvidas, assegurado o respeito integral à autonomia nacional. Dizer
patrimônio da humanidade não significa abstrair as águas de um país do seu
patrimônio nacional (traduzido em domínio efetivo daquela parcela em seu
território). Na perspectiva de uma convivência internacional baseada no
princípio da sustentabilidade, a dominialidade nacional sobre suas águas
territoriais ganha o sentido de responsabilidade, perante os demais povos, de
zelar pela parcela que lhe cabe.
O recurso
água, bem natural essencial e limitado será, provavelmente, objeto do primeiro
grande teste de convivência e sobrevivência global.
Portanto:
- é necessário e urgente que os povos e as nações reconheçam a importância vital da água como bem ambiental escasso e adotem uma política mundial de proteção desse bem, com a defesa contra sua apropriação privada e seu uso como instrumento de poder;
- cada nação é responsável pela parcela que lhe cabe,
devendo a comunidade internacional respeitar os direitos e cobrar os deveres
correspondentes, no quadro de observância da soberania nacional;
- as águas compartilhadas por mais de uma nação devem ser objeto
de gestão comum, baseada na convivência pacífica e concretizada em ações efetivas visando a proteção e o bom uso dos mananciais
- ás águas do planeta devem ser fator de paz e não de guerra
3. O direito à água potável
Mesmo
que a porção líquida e não salgada seja ínfima em relação à quantidade total, é
essa parcela a mais adequada para ser aproveitada, seja diretamente, seja
depois de purificada, para o uso mais nobre entre todos: o abastecimento humano
na alimentação e na higiene pessoal e doméstica.
É
fundamental que se destaquem e se distingam as especificidades desse uso,
diferenciando-o, no conjunto da “questão da água”,
A
água potável é indispensável à vida e à saúde humanas. Desde que a ciência
comprovou a relação entre a água contaminada e a veiculação de doenças, o
abastecimento de água com qualidade própria para ingestão, preparo de alimentos
e higiene pessoal passou a constar com prioridade entre os direitos de todos os
cidadãos. Além de fator de bem estar individual, a disponibilidade de água
tratada é reconhecida como determinante de desenvolvimento social e econômico.
Por
todos esses motivos, o acesso universal à água potabilizada e distribuída em
todos os domicílios deve fazer parte, prioritariamente, da pauta de todas as
políticas públicas, seja de saúde, ambiental, de bem estar social e de
desenvolvimento urbano e regional. O uso da água para o abastecimento humano,
sob a forma de sistemas de distribuição urbanos é o mais importante e o mais
nobre entre os usos da água e de suas fontes naturais, o que é reconhecido pela
lei brasileira.
Hoje
em dia, o suprimento adequado de bilhões de indivíduos representa um dos
maiores desafios da humanidade. Diversos fatores complicam o quadro:
- o
agravamento da escassez quantitativa da água (mais crucial em certas regiões)
devido à competição com a demanda de outros usos, como a irrigação;
- o aumento da
escassez de água de boa qualidade devido à degradação dos mananciais (tanto
superficiais quanto subterrâneos) pela poluição resultante de todas as
atividades, inclusive gerada pelos próprios dejetos humanos indevidamente
lançados nos corpos de água;
- a
deterioração dos próprios corpos de água pelas intervenções intencionais ou não
(barragens, retificações, desmatamento, mineração nos leitos, erosão,
perfuração descontrolada de poços);
- o desequilíbrio natural na distribuição das águas, seja espacial (regiões áridas, regiões úmidas), seja no tempo (períodos de seca, épocas de enchentes), que agrava, sob diferentes aspectos, a escassez localizada;
- a magnitude
da demanda e os infindáveis recursos financeiros daí decorrentes, cada vez
maiores em função da piora da qualidade dos mananciais ou da distância cada vez
maior daqueles que são apropriados, investimentos que são indispensáveis para a
instalação de equipamentos e para sua operação;
- o
desperdício em níveis preocupantes, seja por falhas operacionais dos sistemas
de abastecimento, seja pelo uso descontrolado por parte dos usuários.
Diante desse
quadro, em que a essencialidade do uso confronta-se com a escassez, onerando
cada vez mais o processo de potabilização e distribuição e transformando a água
potável em um bem cada vez mais caro, surgem duas alternativas:
- submissão às regras de mercado, passando-se a considerar a água potável uma mercadoria com um preço definido pelos custos de produção e pela capacidade de pagamento dos usuários (e, claro, regulado pelas regras da concorrência) ou
- o respeito
ao caráter social do serviço, reconhecendo a água potável como um bem público,
com seu preço definido por uma política que reconhece o direito universal a seu
acesso confrontado com a capacidade da sociedade de enfrentar os custos desse
acesso.
Obviamente, no
primeiro caso, temos a adoção do preço de mercado como balizador da oferta e no
segundo, o interesse social e a adoção de mecanismos não meramente econômicos
de regulação tarifária.
É preciso que
se diga que a subordinação do serviço de abastecimento de água potável às
regras de mercado está sujeita a todas as implicações atuais que regem o mundo
economicamente globalizado: dependência potencial ou efetiva dos dois ou três
gigantes da “indústria da água” que já dominam grande parte dos serviços, em
todo o mundo, atendimento preferencial ou exclusivo aos consumidores com
condições de pagar o preço imposto pelo mercado, priorização das localidades ou
regiões onde as condições de produção e distribuição apresentem menores custos
e maior rentabilidade e conseqüente subordinação de todo o serviço ao domínio
econômico, mesmo com danos sociais relevantes.
Também é
preciso lembrar que o abastecimento de água potável é um serviço
necessariamente coletivo que configura um monopólio local, isto é, um usuário
não pode escolher individualmente o seu fornecedor, pois não há lugar para mais
de um, em cada localidade.
Se formos às
últimas conseqüências, o direito fundamental a esse serviço essencial associado
a suas características operacionais conduz necessariamente à gestão pública,
isto é diretamente por órgãos da administração estatal ou por organismos
delegados, com os direitos de concessão regulados por regras de política
pública que subordinem claramente os mecanismos de investimento e de preço.
É importante
considerar que a distribuição domiciliar de água tratada gera,
conseqüentemente, um volume proporcionalmente maior de esgotos, os quais
precisam ser afastados dos domicílios e ter suas cargas poluentes reduzidas
antes de lançados aos corpos de água. Assim, esses dois serviços devem ter, necessariamente,
uma gestão articulada, o que configura a gestão do saneamento ambiental (o qual
inclui, ainda, a coleta e disposição dos resíduos sólidos, a drenagem das águas
da chuva, a proteção contra enchentes e o controle de vetores de doenças).
Trata-se de um setor que interage com as gestões da saúde pública, do meio
ambiente e dos recursos hídricos, mantendo, entretanto sua especificidade.
Aliás, esses quatro segmentos da gestão pública não podem ser dissociados, mas
também não devem ser confundidos.
Não é demais,
tendo em vista a consideração acima, lembrar a importância de que, na comunicação pública, seja
feita a distinção entre a gestão das águas (recursos hídricos, águas da
natureza) e a gestão do saneamento (incluída, de forma especial, o abastecimento
de água potável). A mesma distinção é indispensável ao legislador
, ao administrador e também ao educador. Distinguir entre “cobrança pelo
uso da água” e “tarifas de água potável e de esgotamento sanitário”, por
exemplo, é fundamental. A defesa do caráter público da gestão
dos recursos hídricos e posição similar a respeito dos serviços de
abastecimento de água também devem ser colocados nos devidos termos e contextos.
Sem isso, corre-se o risco de confundir e até prejudicar a defesa dos
interesses sociais.
Nesse
contexto, podemos, então, enunciar com clareza:
- o acesso universal à água potável é um direito fundamental
de todos;
- o abastecimento humano é o mais importante
dos usos das águas e
como
tal deve ser considerado pelos sistemas de gestão dos recursos hídricos;
- o abastecimento de água às populações deve ser objeto de
uma gestão pública dentro do quadro mais amplo da gestão do saneamento
ambiental.
Porto Alegre,
11 de março de 2004