1 –
Que problemas pode apresentar um rio?
Genericamente, um corpo d’água, seja ele superficial (rio,
arroio) ou subterrâneo (aqüífero ou lençol subterrâneo),
pode apresentar dois tipos de problemas:
– quantitativos (escassez ou excesso de água)
– qualitativos (poluição)
Os dois tipos são associados, porque
– sempre que há poluição, há menos água
de boa qualidade e
– sempre que diminui a quantidade de água de um rio, a tendência
é piorar a qualidade.
2 – Como começam
a ser percebidos os problemas de um rio?
Os problemas de um corpo d’água (superficial ou subterrâneo)
são percebidos sempre em função dos usos do mesmo.
Em outras palavras, enquanto um corpo d’água é utilizado
sem efeitos negativos, ele não é problema ou não
tem problemas.
Os problemas surgem quando o corpo d’água começa a
não ter condições para enfrentar:
– a intensificação de um ou mais usos (exemplos: uma
cidade cresce e necessita mais água do que o rio pode fornecer;
as descargas de dejetos crescem e o rio começa a não ter
mais condições de assimilá-los);
– o surgimento de novos usos (por exemplo, um rio que era usado
apenas para lazer – banhos, pesca recreativa – e abastecimento
público, começa a ser usado para irrigação
em larga escala, e local de despejos de resíduos industriais ou
da navegação);
– as intervenções que o aumento dos usos ou os novos
usos provocam (por exemplo, a construção de barragem para
geração de energia ou para irrigação, a retirada
intensiva de água, o desmatamento das margens para implantar indústrias
ou moradias).
3 – Os problemas de um
rio são restritos às suas águas?
Não. Em primeiro lugar, porque um corpo d’água (superficial
ou subterrâneo) nunca está isolado na natureza:
– como a água é um fluido (elemento móvel,
capaz de mudar de estado físico e de conter ou diluir outras substâncias
ou corpos), cada corpo d’água é a forma provisória
que é assumida por uma parte da água existente na Terra,
ou seja, um rio, um lençol subterrâneo ou uma nuvem são
partes do ciclo hidrológico em constante mutação;
– no caso particular de um rio (corpo d’água superficial),
tudo o que aconteceu com as águas que o formam interfere nas suas
características, estejam essas águas
- na atmosfera (chuva);
- no solo (nascentes, torrentes, afluentes);
- no subsolo (águas subterrâneas).
Por esse motivo, a unidade geográfica das águas na natureza
é a bacia hidrográfica (espaço limitado pelas partes
mais altas do terreno, o divisor de águas, dentro do qual toda
a água escorre em direção a um mesmo corpo d’água);
– a água, assim como o ar, é essencial para a vida,
e um corpo d’água (assim como a atmosfera) é o habitat
de muitas formas de vida; essa relação ecológica
faz com que a água não possa ser vista apenas como uma substância
química e um corpo d’água somente como um componente
físico da natureza.
Em segundo lugar, porque as atividades humanas que geram os problemas
de um rio podem se desenvolver em espaços distantes de seu leito.
Exemplificando:
· o barqueiro, o banhista, a casa na beira do rio e até
mesmo o agricultor e a pequena indústria nas margens podem não
estar gerando problemas, enquanto
· o consumo de energia e de produtos agrícolas ou industriais,
longe do rio, podem ser as verdadeiras causas desses problemas, na medida
em que:
– a geração de energia elétrica modifica o
regime (e, indiretamente, a qualidade) de um rio,
– a produção agrícola e a produção
industrial consomem água e provocam poluição.
Grande parte das atividades desenvolvidas em qualquer cidade de uma bacia
hidrográfica afeta, de alguma forma, as condições
das águas da mesma. Por isso, os problemas de um rio são
relacionados a fatores econômicos, sociopolíticos e culturais.
Portanto, tais problemas estão associados a fatores coletivos,
desencadeados por agentes sociais (parte da sociedade) em função
de interesses econômicos (produção, consumo, mercado),
manifestados e exercidos dentro de padrões e valores culturais
e regulados (ou não) por decisões políticas e normas
legais.
Como observação final, é preciso ter presente que
os problemas de um rio são gerados por uma rede bastante complexa
de agentes e causas que não podem ser minimizadas ou simplificadas.
4 – Como enfrentar os
problemas de um rio?
Os problemas são gerados coletivamente, portanto, devem ser enfrentados
coletivamente.
Os problemas são gerados por partes da sociedade com interesses
definidos, muitas vezes conflitantes uns com os outros. Portanto são
problemas que devem ser equacionados sob a condução de um
ente que represente todas as partes interessadas ou afetadas, que represente
a sociedade como um todo, ou seja, o Estado (no sentido de Poder Público).
Em outras palavras, os problemas de um rio (ou melhor, dos recursos hídricos
de uma bacia hidrográfica) devem ser tratados como questões
de interesse público (e não de interesse privado, de partes
da sociedade). E as ações para resolver esses problemas
devem, necessariamente, ter um caráter público, impositivo
e eficaz, em nome do interesse maior do conjunto dos cidadãos (atuais
e futuros).
5 – Como conseguir eficácia
no enfrentamento dos problemas de um rio?
Como os problemas de um rio (ou dos recursos hídricos ou dos recursos
naturais em geral, de uma bacia hidrográfica) são gerados
pelos usos e pelas atividades humanas, as causas dos mesmos são
as próprias necessidades (já existentes ou novas) da sociedade
ou de partes da mesma. Não adianta, portanto:
– atacar apenas os efeitos (“limpar” o rio ou as margens,
apenas dragá-lo);
– pretender simplesmente impedir alguns ou todos os usos (voltar
ao passado sem cidades, indústrias ou agricultura);
– defender o cumprimento automático de todas as leis (existentes
ou novas), pela ação coercitiva do estado (como se o Poder
Público fosse onipotente ou mágico, independente da sociedade
e como se o cumprimento das leis não implicasse dificuldades técnicas,
financeiras, etc.);
– mobilizar a opinião pública ou grupos da comunidade
sem criar ou acionar os recursos e os instrumentos que intervenham nas
causas dos problemas (querer “salvar” o rio por um “ato
de vontade”);
– desencadear o processo inicial de recuperação (despoluição,
recuperação do leito, etc.) como se, uma vez atingidos seus
objetivos, nada mais precisasse ser feito nem houvesse novos riscos (ilusão
do “rio despoluído”).
A experiência mundial, particularmente a da França (reconhecida
nos demais países), indica que os problemas de um rio só
podem ser enfrentados eficazmente:
– sob a autoridade do Estado, mas integrando, nas tomadas de decisões
e nas ações os setores, usuários e as comunidades
da bacia hidrográfica;
– considerando esses problemas sob a ótica de um gerenciamento
dos recursos hídricos permanente, que abranja o diagnóstico
da situação (o que a natureza oferece, o que os usuários
e a comunidade precisam, os efeitos desses usos), a tomada de decisão
sobre metas (objetivos de qualidade e de quantidade, prioridades de usos),
recursos (humanos, técnicos e financeiros – quais, quantos,
em quanto tempo, como devem ser obtidos, quem entra com o quê e
com quanto) bem como criação e acionamento de instrumentos
legais e institucionais para executar ações contínuas
e permanentes.
Em resumo, o gerenciamento dos recursos hídricos pressupõe
a existência de um sistema institucional (Sistema Estadual de Recursos
Hídricos) que atue com base em um planejamento participativo periodicamente
renovado (Planos de Bacia, Plano Estadual de Recursos Hídricos),
que tenha força de lei.
6 – Quais os instrumentos
mais importantes no gerenciamento dos recursos hídricos?
Os dois instrumentos mais importantes são a outorga e a cobrança.
– A outorga do uso da água – o Estado (Poder Público)
exerce seu direito como proprietário das águas (Constituição
Federal, Artigos 20. III e 26. I), autorizando o uso das mesmas para certas
finalidades, sob determinadas condições (de quantidade e
de qualidade). No sistema de gestão compartilhada, a orientação
geral para a outorga e seus critérios devem ser fixadas no processo
de planejamento participado. Os usos e suas condições devem
ser discutidos por representantes dos órgãos públicos,
dos setores de usuários e das comunidades da bacia, no Comitê
de Bacia, tendo como referência o diagnóstico da realidade,
resultando daí indicações fortes ou até impositivas
para os órgãos que devem formalizar a outorga e fiscalizar
os usos e seus efeitos.
– A cobrança pelo uso dos recursos hídricos –
os problemas de escassez, poluição, deterioração
ambiental, etc., provocados pelos usos dos recursos hídricos, apresentam
sempre uma dimensão econômica. Não podendo ser usados
indiscriminada e indefinidamente por todos e em qualquer circunstância,
os recursos hídricos enquadram-se, queira-se ou não, na
categoria de bens econômicos (não são bens livres,
ilimitados, à disposição de todos). Cabe à
sociedade decidir como seu valor econômico vai ser definido, quantificado,
atribuído e distribuído entre os usuários. Por diversos
motivos, dos quais um dos mais importantes é o fato de os recursos
hídricos serem bens públicos, os mecanismos de mercado não
são apropriados para estabelecer os preços correspondentes
a cada uso da água ou do rio. A forma proposta para definir os
valores a serem cobrados, inspirada no modelo francês (e análogo
ao que se faz em um condomínio para decidir a quota condominial)
é a seguinte:
a) No processo de planejamento da bacia, feito o diagnóstico, com
auxílio de organismos técnicos (por exemplo, uma Agência
de Bacia), discutem-se, no Comitê de Bacia, os objetivos de qualidade
e quantidade, por trechos de cursos d’água, a serem atingidos
em determinado prazo, em função de usos propostos. Esboçam-se
alternativas que combinam diferentes objetivos e usos, entre os mais desejados
e/ou necessários. A cada alternativa corresponde um conjunto de
ações, intervenções ou obras, com o respectivo
custo. Evidentemente, quanto mais ambiciosos os resultados, em aproveitamento
dos recursos hídricos com melhoria ambiental, tanto maiores serão
os custos da alternativa.
b) O Comitê decide a alternativa, ficando definido quanto cada setor
usuário deve pagar (pela retirada da água, pelos lançamentos
de despejos e até por outros usos, como navegação,
geração de energia, etc.).
c) A efetivação da cobrança deve ser feita por um
organismo técnico público (Agência de Bacia) e o montante
arrecadado constituirá um fundo que permita o investimento direto
em obras ou ações públicas prioritárias, ou
o financiamento de outras obras ou ações públicas
ou privadas importantes para a bacia, tudo de acordo com o Plano de Bacia.
d) As quotas ou tarifas definidas pelo Comitê de Bacia deverão
ter reconhecimento e força legal, sendo obrigatório seu
pagamento pelos setores usuários.
Deve-se notar que dificilmente os setores usuários poderão
arcar com todos os custos de uma alternativa, mesmo que seja aquela de
resultados mínimos indispensáveis em dadas circunstâncias
de deterioração ambiental ou de conflito de usos. Pode ser
necessário recorrer a outras fontes de dinheiro (a fundo perdido
ou financiado). Como em um condomínio, uma reforma total do edifício
pode exigir empréstimo externo a ser pago pelos condôminos
a longo prazo ou então um ritmo mais lento nas obras.
É importante frisar que os valores das quotas (tarifas) devem ser
tais que desencoragem o desperdício e a irresponsabilidade e que
incentivem as iniciativas próprias para a redução
da poluição e do consumo de água no próprio
processo produtivo.
7 – O que é necessário
para que o gerenciamento de uma bacia hidrográfica alcance resultados
efetivos?
É indispensável que
– haja compreensão nítida da proposta, um mínimo
de consenso e participação ativa de todas as partes, cada
qual de acordo com seu papel;
– o sistema seja legalizado (aprovado em Lei) e implantado (criadas
todas as instituições necessárias, com os recursos
e as atribuições legais correspondentes).
Dezembro de 1993 |