Os Comitês de Bacia no Rio Grande do Sul - uma experiência histórica
Eugenio Miguel Cánepa
- Economista
- Pesquisador da Fundação de Ciência e Tecnologia – CIENTEC
- Representante da Secretaria de C&T no Comitê Taquari-Antas
Luiz Antonio Timm Grassi
- Engenheiro Civil- Membro do Conselho Consultivo da Associação Brasileira de Engenharia Sanitária e Ambiental - ABES/RS
- Presidente do Comitê Lago Guaíba
Como surgiram os comitês de bacia
A idéia de um gerenciamento dos recursos hídricos tendo como base a bacia hidrográfica começou a ser difundida, no Brasil, nos anos setenta. Constatava-se, então, que essa abordagem, em países como a Inglaterra, a Alemanha, a França e os Estados Unidos, vinha dando resultados bem melhores do que as tentativas localizadas de controle de poluição ou maximização de usos da água. Por conta desse enfoque, o Governo Federal criou os Comitês de Estudos Integrados em algumas das mais importantes bacias de rios federais, colegiados interinstitucionais sob a égide do Departamento Nacional de Águas e Energia Elétrica - DNAEE.
Mesmo não comportando um corpo de água federal, a bacia hidrográfica do Guaíba foi contemplada com um desses comitês, o Comitê Executivo de Estudos Integrados da Bacia do Guaíba - CEEIG . Esse organismo, instalado em 1979, realizou uma competente tarefa de aglutinar órgãos federais, estaduais e municipais e de sistematizar conhecimentos a partir de estudos já existentes, chegando a propor um enquadramento por classes de usos para os principais cursos de água da bacia, transformado em norma legal. O CEEIG operou até os primeiros anos da década de oitenta, sempre com caráter de grupo de estudos e de consulta.
Em 1981, por conta do interesse do Governo gaúcho em beneficiar-se de recursos federais para a irrigação, e atendendo exigência nesse sentido, foi criado, por decreto um "sistema estadual de recursos hídricos", tendo como órgão principal um Conselho de Recursos Hídricos do Rio Grande do Sul - CONRHIRGS. No mesmo decreto, foram previstos "comitês de bacia hidrográficas" sob forma dual: para cada bacia haveria um "comitê executivo" (composto apenas por órgãos oficiais) e um "comitê consultivo" (com entidades não governamentais). Chegaram a ser criados alguns desses comitês e até mesmo instalados, mas nenhum teve funcionamento efetivo.
Ao lado dessas iniciativas oficiais, os anos setenta e oitenta viram surgir e consolidar-se o movimento ambientalista, sensível à degradação dos bens ambientais, entre eles, e de forma especial, a água. Entre os corpos de água que suscitaram maior atenção, estavam o lago Guaíba e dois de seus formadores, os rios Gravataí e dos Sinos, situados em uma região altamente urbanizada e industrializada (Região Metropolitana de Porto Alegre) e, portanto, alvos de um processo de poluição aguda e acelerada. Motivados por essa preocupação, organizaram-se entidades e foram promovidas campanhas direcionadas à opinião pública e à atuação governamental. Como resposta a essas demandas, começaram-se a instituir os órgãos de controle e fiscalização da poluição, que, mais tarde, evoluíram para a gestão ambiental.
Nesse contexto, deflagrou-se, em 1987, a campanha SOS Sinos, conduzida por entidades ecológicas da região, meios de comunicação locais, autoridades locais e estaduais e setores da indústria. Esse movimento culminou com um seminário, em 17 de setembro de 1987, na Universidade do Vale do Sinos - UNISINOS, sediada na cidade de São Leopoldo. Na oportunidade, foi decidida a criação de um "comitê de bacia" para enfrentar a iminente morte do rio dos Sinos. Já na primeira reunião preparatória, foi abandonado modelo de dois comitês paralelos, um executivo e outro consultivo e decidido propugnar pela criação oficial de um comitê que se dedicasse ao gerenciamento permanente das águas da bacia.
Criado por decreto governamental em 17 de março de 1988, o Comitê Sinos tornava-se o primeiro comitê de gerenciamento de bacia de rio estadual implantado no país. O nome original, Comitê de Preservação, Gerenciamento e Pesquisa do Rio dos Sinos demonstra a ambigüidade de propósitos do novel organismo, com a indecisão entre os objetivos de estudo e investigação científica, atividades de controle e fiscalização, mobilização e conscientização, atuação técnica ou administrativa.
O segundo comitê a ser organizado teve uma gênese semelhante. A poluição do rio Gravataí era objeto, há vários anos de campanhas de conscientização, por parte de ambientalistas e já causara o abandono de captações de água para abastecimento público no trecho inferior do rio. A lavoura predatória causava a redução crescente de áreas alagadiças, reguladoras do regime do rio e de grande importância ecológica. Essa conjunção de fatores motivou criação, no início de 1988, de um grupo de trabalho interinstitucional, promovido pela Fundação Metropolitana de Planejamento - METROPLAN e pela Associação dos Ex-Bolsistas da Alemannha - Seção Sul - AEBA-RS, que preparou um seminário, realizado no Instituto Goethe, em Porto Alegre, quando foi lançado o comitê de bacia. Em 15 de fevereiro de 1989, decreto governamental criava o Comitê de Gerenciamento da Bacia do Rio Gravataí.
Ambos os comitês, apesar da precariedade de recursos e da falta de poder legal efetivo de gerenciamento dos recursos hídricos das respectivas bacias, conseguiram aglutinar entidades e pessoas, tanto da sociedade civil, dos setores produtivos e do setor público, mantendo suas atividades initerruptamente até o presente. O Comitê Sinos teve o apoio material da UNISINOS, que passou a sediá-lo e o Comitê Gravataí teve o suporte da METROPLAN.
Uma série de iniciativas correspondendo a demandas concretas e específicas, embora conseguindo alguns avanços concretos na solução de problemas ou de conflitos demonstrou a precariedade de ações voluntaristas e isoladas. Ao mesmo tempo, serviu para manter a coesão dos interessados em torno dos comitês. Entre as ações desenvolvidas, podem ser mencionadas, no caso do Comitê Sinos, campanhas junto a indústrias pela adoção de medidas para controle de poluição, articulação das prefeituras e órgãos estaduais para resolver problemas relacionados com o destino dos resíduos sólidos, a implantação de uma rede de monitoramento da qualidade da água compartilhada entre a Companhia Riograndense de Saneamento, o Departamento Municipal de Água e Esgotos de Porto Alegre, o Serviço Municipal de Água e Esgoto de São Leopoldo e a Fundação Metropolitana de Planejamento e a promoção de cursos de capacitação em educação ambiental para professores que originou uma rede intermunicipal de educadores, além de inúmeras outras iniciativas de ordem local ou regional, de curta ou longa duração. No caso do Comitê Gravataí, o trabalho centrou-se na campanha para a preservação e restauração de ecossistemas atingidos pela agricultura e por medidas de correção do regime hidrológico atingido por obras de retificação e canalização do curso do rio, além de ações de incentivo à educação ambiental, ao controle da poluição industrial e à solução de problemas de saneamento básico nas áreas de resíduos sólidos, esgotamento sanitário e abastecimento público de água., entre outras.
A necessidade de um Sistema Estadual de Recursos Hídricos
A experiência dos dois comitês pioneiros logo demonstrou a necessidade de construir um arcabouço teórico que desse um sentido à ação, superando o expontaneísmo dos primeiros tempos e fundamentando doutrináriamente, com base no que houvesse de mais recente no "estado da arte" do gerenciamento dos recursos hídricos. Partiu-se, então, para a busca desses fundamentos teóricos onde eles estivessem sendo aplicados. Foi constituído um grupo de trabalho interinstitucional, a partir de iniciativa da Assessoria de Recursos Hídricos da Companhia Riograndense de Saneamento - CORSAN, o qual procurou capacitar-se do estágio de experiências no país e no exterior. Foram estudadas experiências estrangeiras (França, Alemanha, Inglaterra, Estados Unidos), recolhendo conhecimentos adquiridos por integrantes do grupo em viagens de estudo (particularmente um estágio na França em 1991, com o patrocínio da Fundação de Ciência e Tecnologia - CIENTEC e da Fundação de Amparo à Pesquisa do Rio Grande do Sul - FAPERGS) e aproveitou-se, também o aporte de estudos e discussões que havia, desde alguns anos, no Brasil, seja no meio acadêmico, seja nas instituições públicas. Uma característica importante é a de que esses estudos, esses debates, em suma, essa elaboração, deram-se em contínuo confronto com a experiência concreta vivida pelos comitês e seus participantes. Dessa maneira, a rotina de carências, de necessidades, de interesses e problemas sempre temperaram a discussão intelectual, assim como o contexto político-institucional sempre condicionou o andamento do processo. Os comitês traziam à tona questões concretas de conflitos pelo uso da água, de ameaças à conservação dos corpos de água, de acidentes ou eventos imprevistos. A precariedade de recursos materiais ameaçou, diversas vezes a sobrevivência das duas instituições. À medida em que se ia formulando um modelo de gerenciamento, a própria realidade questionava sua adequação às situações e problemas concretos que eram vividos. Muito breve ficou clara a necessidade de um suporte institucional e legal mais abrangente e poderoso - uma lei e um sistema institucional que fizesse o Estado assumir sua responsabilidade no gerenciamento dos recursos hídricos adotando uma política pública para as águas.
Assim como os Comitês Sinos e Gravataí foram os dois laboratórios da experiência, uma outra instituição foi o instrumento de aglutinamento das entidades e pessoas que discutiam a doutrina e a estratégia do processo: a Comissão Consultiva do CONRHIRGS, que agregava mais de trinta entidades da sociedade civil e órgãos públicos. No âmbito desse colegiado, foram gestadas as principais formas que moldaram legal e institucionalmente o Sistema Estadual de Recursos Hídricos do Rio Grande do Sul.
As Constituições Federal de 1988 e Estadual de 1989 deram os fundamentos legais para o Sistema. A primeira define claramente a água como bem público, cabendo à União o domínio dos rios de fronteira interestadual ou internacional e dos rios que atravessam essas fronteiras e aos Estados federados as demais águas (superficiais e subterrâneas). Determina, também, a instituição de um sistema nacional de gestão dos recursos hídricos. Já a Carta gaúcha, no Artigo 171 (elaborado com contribuição de participantes da C.C.), determina a existência de um sistema estadual de recursos hídricos, tendo a bacia hidrográfica como unidade de planejamento e gestão e como instrumentos a outorga e a cobrança do uso da água (com reversão do resultado da cobrança para a própria bacia).
A partir desses fundamentos, foi modelado um sistema de gestão e elaborado um texto de projeto de lei que traduzisse o modelo proposto promovesse o seu funcionamento. Um grupo de trabalho foi instituído pelo Presidente do CONRHIRGS e, em meados de 1991 apresentou a minuta de uma "lei das águas". A partir de então, promoveram-se discussões nos mais diversos fóruns, desde os dois comitês de bacia aos mais diversos setores da sociedade. Nesse período, os comitês passavam, esporadicamente, por fases em que sua sobrevivência parecia correr riscos, caso não tivessem o respaldo de uma legislação que lhes atribuísse encargos e poderes definidos e de um sistema institucional que viesse a instrumentar as ações de gerenciamento. O que manteve sua continuidade foi a permanente discussão de questões de interesse concreto e imediato, a par do acompanhamento do processo de instauração de um sistema estadual de recursos hídricos. A partir de 1993, começou a ser organizado mais um comitê, na bacia do rio Santa Maria, onde os conflitos pelo uso da água para irrigação estavam exacerbados. Esse comitê foi criado oficialmente no início do ano seguinte.
Finalmente, no ano de 1994, o Executivo Estadual enviou para exame da Assembléia Legislativa o anteprojeto da Lei das Águas. Embora tenha sido promovida, pela Comissão de Saúde e Meio Ambiente do parlamento estadual, uma exposição sobre o sistema proposto no anteprojeto, ensejando a discussão sobre seus diversos aspectos, o tema não chegou a sensibilizar os deputados, não se verificando o esperado debate parlamentar que eventualmente trouxesse aperfeiçoamentos ao texto apresentado. De qualquer modo, o anteprojeto foi aprovado por unanimidade da Casa Legislativa e sancionado integralmente pelo Governador do Estado, como Lei n° 10.350, de 30 de dezembro de1994.
Com a nova Lei (analisada no artigo "A Lei das Águas do RS - no caminho do desenvolvimento sustentável?", deste número) , os três comitês existentes passam a contar com um quadro legal e institucional que lhes dá suporte e oficialidade.
A Seção 4 da Lei 10.350/94 trata "Dos comitês de gerenciamento de bacia hidrográfica". Fica expresso que cabe a eles "a coordenação programática das atividades dos agente públicos e privados , relacionados aos recursos hídricos, compatibilizando, no âmbito espacial da bacia, as metas do Plano Estadual de Recursos Hídricos com a crescente melhoria da qualidade dos corpos de água".
A composição dos comitês contempla a divisão de três grupos de participantes, representando interesses diferenciados e complementares, com relação aos recursos hídricos.
Um dos grupos é o dos "usuários da água", definidos como "indivíduos, grupos, entidades públicas e privadas e coletividades que, em nome próprio ou no de terceiros, utilizam os recursos hídricos como a) processo produtivo ou para consumo final; b) receptor de resíduos; c) meio de suporte de produção ou consumo." É o grupo que, supostamente, encara a água e suas fontes naturais ("superficiais e subterrâneas, fluentes, emergentes e em depósito", como diz o Artigo 171 da Constituição Estadual) de um ponto de vista predominantemente utilitário, às mais das vezes associado a interesses econômicos expressos. É um grupo que abriga disputas e conflitos entre agentes de usos diferentes ou mesmo dentro do mesmo uso. A Lei determina que a representação reflita o peso econômico e o potencial de impacto dos usos na bacia, chamando à responsabilidade solidária os principais usuários.
Outro grupo é aquele dos representantes "da população da bacia, seja diretamente provenientes dos poderes legislativos municipais ou estadual, seja por indicação de organizações e entidades da sociedade civil". Pode ser entendido como o grupo que representa os interesses difusos da sociedade regional, vinculados ou não ao desenvolvimento sócio-econômico. Nesse grupo, a preocupação pelos recursos hídricos, seus usos e sua conservação emerge de uma gama mais vasta de interesses cívicos ou culturais e também pode abrigar enfoques diferenciados e até conflitantes (é o caso da discussão de posições que expressam, na prática, diferentes conotações do conceito de desenvolvimento sustentável).
O terceiro grupo reúne os representantes do Poder Público, nos dois níveis constitucionalmente detentores do domínio das águas, o federal e o estadual.
A distribuição proporcional dessas representações apresenta uma importante inovação, ao reservar 40% dos votos de um comitê a cada um dos dois primeiros grupos e apenas 20% aos representantes diretos do Poder Público. Observe-se que entes públicos, como órgãos da administração municipal ou estadual podem integrar o grupo dos usuários, desde que detentores de serviços que impliquem determinados usos dos recursos hídricos. No grupo da população, também o Poder Legislativo tem sua representação prevista. Fica alterada, portanto, a divisão tradicional entre entes oficiais e não governamentais, em proveito de uma outra divisão, baseada na relação dos organismos com a água e seus usos. De qualquer forma, garante-se a preponderância da representação societária, em níveis inéditos em termos de gestão pública de um bem natural. Isso é realçado também pelo fato de que a presidência de um comitê deve ser exercida por um integrante do grupo dos usuários ou do grupo da população.
As entidades oficiais que têm funções licenciadoras ou outorgantes formam um segmento à parte, sem direito de voto, evitando a incompatibilidade entre suas atribuições originais e sua participação no comitê.
Quanto às atribuições dos comitês, a Lei, no Artigo 19, define explicitamente as mesmas:
"I - encaminhar ao Departamento de Recursos Hídricos a proposta relativa à bacia hidrográfica, contemplando, inclusive, objetivos de qualidade, para ser incluída no anteprojeto de lei do Plano Estadual de Recursos Hídricos;
II - conhecer e manifestar-se sobre o anteprojeto de lei do Plano Estadual de Recursos Hídricos previamente ao seu encaminhamento ao Governador do Estado;
III - aprovar o Plano da respectiva bacia hidrográfica e acompanhar sua implementação;
IV - apreciar o relatório anual sobre a situação dos recursos hídricos do Rio Grande do Sul;
V - propor ao órgão competente o enquadramento dos corpos de água da bacia hidrográfica em classes de uso e conservação;
VI - aprovar os valores a serem cobrados pelo uso da água da bacia hidrográfica;
VII - realizar o rateio dos custos de obras de interesse comum a serem executadas na bacia hidrográfica;
VIII - aprovar os programas anuais e plurianuais de investimentos em serviços e obras de interesse da bacia hidrográfica tendo por base o Plano da respectiva bacia hidrográfica;
IX - compatibilizar os interesses dos diferentes usuários da água, dirimindo, em primeira instância, os eventuais conflitos."
Como se observa, ficam realçados os poderes do comitê como partícipes da gestão dos recursos hídricos na respectiva bacia e instância de decisão em questões bem definidas.
A Implantação do Sistema e os novos comitês
A implantação do Sistema Estadual de Recurso Hídricos pressupunha a implementação de normas legais regulamentadoras de diversos aspectos, como a adaptação do CRH e dos comitês existentes, a criação do Departamento de Recursos Hídricos e das Agências de Região Hidrográfica e ainda a regulamentação normativa e operacional dos instrumentos de gestão. Correspondentemente, no plano administrativo faziam-se necessárias ações visando à instalação das instituições componentes do Sistema (novos comitês, DRH, ARHs) e a ativação dos instrumentos de gestão com todo seu aparato funcional (sistema de informações, cadastros, monitoramento de qualidade e quantidade etc). Esse processo está em pleno desenvolvimento desde a aprovação da Lei 10.350/94.
Na elaboração e na tomada de decisões sobre diversos aspectos regulatórios, como a divisão administrativa preliminar das bacias, os decretos regulamentadores da outorga e dos comitês de bacia, mais uma vez foi fundamental a contribuição da Comissão Consultiva do Conselho de Recursos Hídricos, na discussão das alternativas e na redação dos textos básicos. Esse fato explica a sobrevida desse colegiado, nessa fase, embora não prevista sua continuidade, pela Lei das Águas.
No processo de implantação do Sistema, a formação dos novos comitês foi a parte vital e também a mais rica e dinâmica. De acordo com proposta da Comissão Consultiva, as três Regiões Hidrográficas (Guaíba, Uruguai e das Bacias Litorâneas) seriam divididas em cerca de vinte bacias, cada uma com seu comitê. Respeitados os fatores hidrográficos (divisores de água), foram adotados critérios de área, população, identidade cultural e atividade econômica para segmentar as unidades, na realidade sub-bacias de bacias maiores, parcelas de sub-bacias ou junção de sub-bacias vizinhas, tudo isso como modelo de trabalho a ser confirmado ou não, na implantação efetiva.
A Lei previa a institucionalização dos comitês por decreto governamental específico, para cada um, mas deixava em aberto o processo e a forma de criação dos mesmos. Entretanto, o nítido viés participativo que impregna a concepção dos comitês, presente na Lei, indicava a necessidade de ser evitada a intervenção autoritária na criação de comitês a partir de decisão unilateral e superior. Para ser coerente com os conceitos da Lei 10.350, e também para dar continuidade à experiência históricas dos primeiros comitês, fazia-se necessário um processo de envolvimento e participação das comunidades das bacias.
Assumindo o modelo de divisão proposta pela Comissão Consultiva, a Secretaria Executiva do novo CRH, secundada pelo corpo funcional da recém criada Divisão de Recursos Hídricos da Secretaria de Obras Públicas, Saneamento e Habitação, realizou um trabalho de esclarecimento, motivação e arregimentação, junto a lideranças regionais.
As bacias dos rios Taquari e do rio Caí foram as primeiras a apresentarem reações positivas por parte de lideranças locais, particularmente de instituições universitárias em cidades pólos da região. Antes do final de 1995, começaram a ser formadas Comissões Provisórias constituídas por cerca de uma dezena de entidades interessadas, cada uma. Destacaram-se os apoios de universidades e do poder público municipal de algumas cidades. Igualmente os setores usuários da água fizeram-se presentes. O trabalho dessas comissões, permanentemente acompanhado por técnicos do Estado e reconhecidas oficialmente pelo Conselho de Recursos Hídricos, estendeu-se por cerca de três anos, com dezenas de reuniões nos mais diferentes locais das bacias. Cada comissão teve sua coordenação e sua secretaria executiva, exercidos por representantes escolhidos pelos demais integrantes, sempre com a condição de ter o devido apoio de suas instituições respectivas. Com pequenas diferenças que atendiam às peculiaridades regionais, cada comissão desenvolveu atividades que podem ser assim esquematizadas
- Atividades internas
- Organização de um programa de comunicação com a população da bacia (divulgação, esclarecimentos, matérias para a imprensa etc).
- Reconhecimento preliminar da realidade da bacia hidrográfica (contornos geográficos, corpos de água principais, municípios que fazem parte, principais características e problemas, disponibilidade de dados, estudos que já foram feitos etc).
- Reconhecimento dos principais usos da água na bacia e respectivos usuários (levando em conta, se existirem, levantamentos a respeito).
- Reconhecimento das formas mais importantes de organização social da população da bacia (associações, organizações, movimentos, clubes de serviço etc).
- Elaboração de uma proposta de composição do comitê, levando em consideração os principais usuários e a organização social.
Nessas atividades, particularmente no segundo e no terceiro item, foram aproveitados estudos técnicos já executados ou em elaboração sob o patrocínio da Divisão de Recursos Hídricos ou da Fundação Estadual de Proteção Ambiental - FEPAM.
- Atividades externas
- Contatos e reuniões com lideranças e entidades, para informar, esclarecer e debater questões de interesse da bacia e a formação do comitê.
- Reuniões amplas por municípios, regiões da bacia ou setores de atividades, onde eram feitas exposições sobre a Lei 10.350/94 e o SERH e apresentadas as propostas de composição do comitê.
- Seminários para lançamento do comitê, com a convocação mais ampla possível da comunidade da bacia, com as propostas finais da Comissão Provisória.
Uma vez concluída a etapa preparatória, a proposta e as recomendações da Comissão Provisória foram encaminhadas ao Conselho de Recursos Hídricos para serem oficializados.
A partir de 1996, outras comissões provisórias foram constituídas nas bacias dos rios Pardo, Jacuí, Vacacaí, Vacacaí Mirim, Tramandaí, Ibicuí, Camaquã e Lago Guaíba.
A proposta original de divisão administrativa das bacias sofreu, ao longo do processo, correções advindas das discussões provocadas pelas comissões provisórias. No caso da bacia do rio Taquari e de seu formador, o rio das Antas, chegou a ser proposta a divisão duas unidades, cada qual com seu comitê e foram inicialmente formadas duas comissões provisórias. Os estudos, as discussões e o trabalho conjunto, entretanto levaram à aprovação, pelo conjunto das entidades envolvidas, da proposta unificada (Comitê Taquari-Antas). Já no caso da bacia do rio Pardo, inicialmente incorporado à Bacia do Baixo Jacuí, os representantes da comunidade defenderam a constituição de um comitê próprio, argumentando o forte sentimento de identidade regional, o que foi aceito pelo Estado. No caso dos rios Vacacaí e Vacacaí Mirim, ambos afluentes do Jacuí, era previsto um comitê para o primeiro, sendo o segundo incluído no Comitê Baixo Jacuí. Por decisão dos interessados, integraram-se as duas bacias, constituindo o Comitê Vacacaí - Vacacaí Mirim. Mais tarde outras modificações foram feitas por decisão de comissões provisórias, atestando o caráter participativo e democrático do processo, inclusive na conformação do sistema, do ponto de vista de divisão geográfico-administrativa.
A instalação dos novos comitês
No documento de recomendações que cada comissão provisória apresentava ao CRH, constavam o número de integrantes do comitê, a especificação das categorias e a proporção de representantes de cada categoria. A título de exemplo, transcrevemos, no Quadro 01, as composições propostas (e aprovadas pelo CRH) de dois comitês.
Uma vez configuradas as propostas dos comitês, cada um deles passou por um processo de eleição e instalação, o qual pode ser resumido nos seguintes passos:
2. Manifestação do CRH, aprovando a proposta de composição e autorizando a Comissão a coordenar o processo de eleição das entidades representantes no comitê.
3. Publicação de convocação ("Aviso"), na imprensa, a cargo da Secretaria Executiva do CRH, chamando as entidades interessadas em fazer parte do Comitê para se cadastrarem (de acordo com as categorias propostas).
4. Exame e avaliação das inscrições, por parte da Comissão e convocação de reunião para a eleição das entidades representantes.
5. Reunião das entidades para eleição, em cada categoria, daquelas que farão parte do primeiro mandato (dois anos) do Comitê.
6. Relatório do processo de eleição e encaminhamento do mesmo, pela Comissão, à Secretaria Executiva do CRH.
Deve ser observado, nesse processo, o fato de que cada categoria de representantes de usuários ou da população, constitui um colégio eleitoral próprio, entre as instituições interessadas, elegendo, entre si, livremente, aqueles que representam não apenas sua entidade, mas o conjunto da categoria. Por conta desse esforço de representatividade ampla, no grupo dos usuários da água, a representação do setor privado tem sido reservada a entidades associativas que reúnem empresas ou usuários individuais. O caráter institucional da representação no comitê tem sido sempre ressaltado.
A oficialização de um novo comitê é feita através de decreto governamental, no qual consta a composição do mesmo. Por questões de ordem conjuntural, no caso dos primeiros comitês posteriores à Lei 10.350/94, os decretos seguiram-se às eleições, tendo estas sido reconhecidas por atos do CRH. Atualmente, como é mais lógico, os decretos precedem as eleições. De qualquer forma, o decreto de criação define apenas o formato básico do comitê, deixando o preenchimento das vagas de cada categoria para o processo eleitoral a ser renovado de dois em dois anos.
O ato final de todo o processo é a instalação oficial do comitê, que marca seu caráter de organismo participante de um sistema público de gestão dos recursos hídricos.
Em todos os comitês instalados até o presente, o processo tem-se revelado exitoso. A mobilização de centenas de entidades, em todo o Estado e a variedade de setores abrangidos (órgãos municipais, empresas e associações empresariais nos mais diversos setores produtivos, universidades e outros estabelecimentos de ensino e pesquisa, sindicatos, associações de moradores, clubes de serviço, associações técnico-científicas, associações de moradores, organizações ambientalistas etc) têm demonstrado a vitalidade do processo. Apenas para exemplificar, nos casos dos dois comitês referidos no Quadro 1, a inscrição de entidades interessadas em integrar os comitês e que participaram das eleições para as respectivas vagas foram cerca de cento e oitenta, para o Taquari-Antas e mais de oitenta para o Caí.
Quadro 01
COMPOSIÇÃO DO COMITÊ CAÍ GRUPO USUÁRIOS Abastecimento Público 04 Setor Agrossilvipastoril 03 Setor Indústria e Agroindústria 04 Esgoto Sanitário e Drenagem 03 Turismo, Esporte e Lazer 01 Energia 01 Mineração 01 Transporte Hidroviário 01 Subtotal 18 GRUPO POPULAÇÃO Legislativo Municipal 06 Instituições de Ensino Superior e Pesquisa 03 Organizações Técnico-Científicas 03 Organizações Ambientalistas 03 Organizações Comunitárias 03 Subtotal 18 GRUPO ÓRGÃOS PÚBLICOS Órgãos Públicos Estaduais 07 Órgãos Públicos Federais 02 Subtotal 09 Total 45 |
COMPOSIÇÃO DO COMITÊ TAQUARI-ANTAS GRUPO USUÁRIOS Abastecimento Público 04 Setor Industrial e Agroindustrial 04 Setor Agropecuário 04 Esgotamento Sanitário e Drenagem Urbana 04 Energia Elétrica 02 Navegação e Mineração 01 Esporte, Lazer e Turismo 01 Subtotal 20 GRUPO POPULAÇÃO Legislativos Municipais 06 Instituições de Ensino 03 Associações Técnico-Científicas 03 Organizações Comunitárias 03 Organizações Ambientalistas 03 Organizações Sindicais 02 Subtotal 20 GRUPO ÓRGÃOS PÚBLICOS Órgãos Públicos Estaduais 08 Órgãos Públicos Federais 02
Subtotal 10
Total 50 |
Atuação e perspectivas dos comitês de bacia
Dos vinte e três comitês previstos em todo o Estado, estão instalados e em funcionamento doze (Sinos, Gravataí, Santa Maria, Taquari-Antas, Caí, Lago Guaíba, Pardo, Vacacaí - Vacacaí Mirim, Tramandaí, Camaquã, Ibicuí e Baixo Jacuí). Na demais bacias, as comissões provisórias estão em fases diferentes de organização.
Cada comitê, ao ser instalado, tem, como primeira tarefa, elaborar seu regimento interno, o qual vai regrar o funcionamento do colegiado. Observa-se que os comitês não contam com estatutos próprios, na medida em que são instituídos pela Lei 10.350/94 e nela têm suas atribuições e composição definidos, como já foi exposto.
Cada comitê conta com uma diretoria composta de presidente e vice-presidente. Além disso, atendendo ao disposto no Decreto 37.034/96, que regulamenta o funcionamento dos comitês, conta com uma secretaria executiva e com uma comissão permanente de assessoramento. O secretário executivo é escolhido pela diretoria com o aval do comitê. A comissão permanente de assessoramento, cujo número de integrantes e forma de escolha varia conforme o comitê, tem a função de secundar a diretoria na preparação e na execução das atividades do comitê.
Tanto os comitês anteriores à Lei, que passaram por um processo de adequação aos dispositivos da mesma, quanto os posteriores, a partir de 1999, têm-se empenhado em sua consolidação e na consecução de seus principais objetivos. Os comitês têm atribuições indeclináveis, previstas na Lei das Águas, as quais configuram uma pauta obrigatória de deliberações e um conjunto de atividades em articulação com outras instâncias do SERH. A priorização do planejamento como modo de atuação, expresso na Lei, determina que vários passos sejam seguidos: a definição de objetivos de qualidade e quantidade a ser atingidos e conservados, traduzidos no processo de enquadramento legal das águas em classes de uso; a elaboração do plano de bacia que corresponderá ao caminho para atingir aqueles objetivos e a fixação dos critérios e dos parâmetros para a aplicação dos instrumentos de gestão (outorga e cobrança); o acompanhamento e a fiscalização dos procedimentos gerenciais e a avaliação continuada dos resultados, assim como a mediação, em todos os passos, nas negociações entre partes e entre os interesses particulares e os coletivos e ainda a garantia da publicização de todo o processo. Com isso, os comitês têm a previsão de uma atuação permanente e renovada.
A par disso, os comitês têm descoberto ou sido chamados a outros papéis ou atribuições que são desempenhadas, sempre que não confrontam com a Lei. Em muitas oportunidades, questões ou acontecimentos relacionados com os recursos hídricos ou, de forma mais ampla, com o meio ambiente, tem sido trazidos aos comitês. Exercem, assim, o papel de fórum para a discussão desses assuntos, oportunizando que os mesmos venham à tona e sejam esclarecidos ou, às vezes ensejem tomadas de posição ou de decisões. É o caso de licenciamento de empreendimentos que possam ter efeitos relevantes sobre a bacia hidrográfica, quando os comitês podem contribuir para a divulgação do processo, para a ampliação da manifestação de opiniões e para as decisões dos órgãos licenciadores. É também o caso de acontecimentos imprevistos, como acidentes provocados pelo homem ou ocorrências meteorológicas, quando o comitê contribui para o esclarecimento e a tomada de medidas apropriadas. As políticas públicas, nos seus aspectos relacionados à questão ambiental também encontram nos comitês espaço para sua discussão. É o que acontece com relação a vários setores do saneamento, (esgotamento sanitário, drenagem urbana, resíduos sólidos etc), a temas da produção agropecuária (questão dos agrotóxicos, dos organismos geneticamente modificados etc), da produção industrial (tecnologias limpas, por exemplo), da produção de energia, dos transportes, do urbanismo etc. Além desses, um papel que os comitês têm desempenhado diz respeito ao incentivo à educação ambiental, entendida como essencial para gerar mudanças de comportamento solidamente fundamentadas e permanentes. Nessa linha, a experiência do Comitê Sinos, ao fomentar uma rede de educação ambiental na bacia, tem servido de exemplo e inspiração para os demais comitês.
O espaço de atuação dos comitês é diversificado e está ainda na fase de ampliação. Não deve ser esquecido, entretanto, que a par de uma certa autonomia, os comitês fazem parte de um sistema e interagem com as demais partes do mesmo. A rigor, todas suas atribuições essenciais não podem ser exercidas sem a participação específica dessas outras instâncias. Seria ilusório ver no comitê o ator único do gerenciamento dos recursos hídricos. Nesse sentido, os comitês somente terão futuro e êxito assegurado com a consolidação do Sistema Estadual de Recursos Hídricos, em todas suas instituições e instrumentos. Mesmo no estágio atual, entretanto, já é possível afirmar que os comitês de bacia do Rio Grande do Sul são uma realidade, têm uma história e contabilizam realizações.
Porto Alegre, fevereiro de 2001
"Abstract" do artigo sobre os Comitês de Bacia do RS
A Lei 10.350/94, a chamada Lei das Águas do Rio Grande do Sul, que por sua vez regulamenta o
art. 171 da Constituição estadual, estabelece um sistema descentralizado e participativo para
a gestão das águas do domínio estadual. Este sistema tem, como ponto central, como foco, os
Comitês de Gerenciamento de Bacia Hidrográfica, instâncias de representação da sociedade que,
funcionando como verdadeiros "parlamentos das águas", assumem a responsabilidade da gestão
recursos hídricos, por delegação explícita do poder público.
A Lei das Águas, ao delinear este sistema descentralizado e participativo, inpirou-se em duas
fontes. De um lado, a experiência internacional, notadamente a experiência francesa (que iniciou
em 1964). De outro, as experiências locais de tentativas de gestão participativa das águas,
iniciadas ainda durante a década de 80. O presente artigo procura resumir essa trajetória, rica e
complexa, que vai desde os primórdios da mobilização no sentido de modernizar a gestão dos
recursos hídricos até a promulgação da Lei das Águas, incluindo as vicissitudes por que passa
o seu processo de implantação.