Fique por dentro

O roubo do mapa de Quintana (por Luiz Antonio Grassi)

25/08/2025 | ABES-RS

O roubo do mapa de Quintana (por Luiz Antonio Grassi)

Luiz Antonio T. Grassi (*)

 

“Olho o mapa da cidade

Como quem examinasse

A anatomia de um corpo…

 

(E nem que fosse o meu corpo!)

 

Sinto uma dor infinita

Das ruas de Porto Alegre

Onde jamais passarei..

… … ,,,”

 

Roubaram, Poeta, a placa que perenizava teu poema! Bem junto à praça da Feira do Livro, a mesma em que eras encontrado frequentemente curtindo a cidade que te acolheu e a quem acolheste na tua poesia! Levaram a placa, mas o teu terno mapa ficará na memória e na emoção dos teus versos. Amaste a cidade, mesmo as ruas que não andaste, as esquinas esquisitas e as moças bonitas. Esse teu poético amor não será nunca roubado.

Mas nem imaginas, Poeta, como anda a “cidade do teu andar”! Lembras da enchente de 41? Como contaste, “entrava-se de barco pelo corredor da velha casa de cômodos onde eu morava. Tínhamos assim um rio só para nós. Um rio de portas adentro. Que dias aqueles! E de noite não era preciso sonhar: pois não andava um barco de verdade assombrando os corredores?

Foi também a época em que era absolutamente desnecessário fazer poemas…” Pois Poeta, viste construírem o Muro da Mauá e deves ter confiado nele, para que não mais andasse um barco assombrando por aí… Mas não cuidaram do muro. Deixaram que, esquecido, se lamentasse, permitindo que a água do Guaíba inundasse as ruas, os edifícios, nosso querido Mercado Público, nosso Margs e tantos negócios e tantas residências. Até mesmo o hotel em que viveste tantos anos, a nossa Casa de Cultura, foi invadida pelas águas. Também não cuidaram para que as bombas levassem as águas da chuva até o lago. E elas ficaram do lado errado, alagando e juntando-se à inundação.

 

Em teus vagares, como dizes, “poeira ou folha levada pelo vento da madrugada”, deves ter chorado pela tua cidade. Já imaginavas, em outra poesia, “em cima do telhado – pirulin lulin lulin, um anjo, todo molhado, soluça no seu flautim”.

Olha, Poeta, justamente nesta tua cidade das ruas onde jamais passarás, esta cidade que foi inundada e que tantas vezes é alagada, quem devia preservá-la de novas tristezas parece nem pensar que essas tragédias podem acontecer de novo e até em pouco tempo! Deves saber melhor do que nossas autoridades que cada vez mais nossa cidade e nosso mundo sofrerão com essas novas loucuras climáticas provocadas pela própria humanidade.E agora, Poeta, querem planejar uma nova cidade. Mas não estão olhando “o mapa da cidade como quem examinasse a anatomia de um corpo”. Para os planejadores, a cidade é um objeto, uma mercadoria, uma coisa.

Não parecem preocupar-se com um sombrio futuro de cada vez mais chuvas ou temporadas secas, calor ou frio extremos. Nem de populações precisando de moradas acessíveis, de vizinhanças companheiras. Ao contrário, a ênfase desse planejamento é tornar a cidade um grande negócio. Tua poesia não caberá nela. Nem se alimentará a convivência camarada que acontece em tantos cantos e em tantas “esquinas esquisitas” com “tantas nuança de paredes”. A ordem será o “adensamento construtivo”, nada mais do que grande número de prédios muito altos e próximos, atingindo até mesmo bairros que preservam características ambiental e socialmente mais adequadas. E as periferias continuarão não contempladas como se a cidade não as integrasse. Em lugar de uma cidade-jardim, preparada para os desafios climáticos, teremos menos espaços abertos, menos verdes, mais fontes de calor e invernos com correntes de ventos frios zumbindo entre as alturas. O adensamento terá conseqüências no aumento do trânsito e na necessidade de renovação dos equipamentos públicos com o respectivo custo. Será uma cidade mais sombria.

Poeta, querem nos roubar a cidade. Não andaremos mais pela tua rua encantada, ela estará apertada e triste. Querem enjaular tua cidade, Poeta! Querem transformar tua cidade em objeto de investimento financeiro. Teremos torres, fortins do capital, cofres altaneiros do lucro. Não verás e não teremos mais verdes, jardins, praças, crianças a brincar. Como dizem os donos da cidade, é preciso construir, construir, adensar e ganhar mais, mais e mais.

Ah! Poeta, não poderás mais cantar “Dorme, ruazinha… É tudo escuro…

E os meus passos, quem é que pode ouvi-los? Dorme o teu sono sossegado e puro, com teus lampiões, com teus jardins tranqüilos”. O trânsito exacerbado pelo adensamento e pelas vizinhanças estreitadas já não dará sossego. “Na noite alta, como sobre um muro, as estrelinhas cantam como grilos…” – mas não, não se ouvirão nem serão vistas as estrelinhas… E como dizes em outra poesia, “os rios… refletem, em vez de estrelas, os letreiros das firmas que transportam utilidades”.

Pensas, Poeta, que tua cidade merece isso? Já antevias, no teu Poema da Circunstância:

 

Onde estão os meus verdes?

Os meus azuis?

O arranha-céu comeu!

E ainda falam nos mastodontes, nos brontossauros,

nos tiranossauros,

Que mais sei eu…

Os verdadeiros monstros, os Papões, são eles, os arranha céus!

Daqui

Do fundo

Das suas goelas

Só vemos o céu, estreitamente, através de suas empinadas

Gargantas ressecas.

Para que lhes serviu beberem tanta luz?!

Defronte

Á janela onde trabalho

Há uma grande árvore…

Mas já estão gestando um monstro de permeio!

Sim, uma grande árvore… Enquanto há verde,

Pastai, pastai, os olhos meus…

Uma grande árvore muito verde…Ah,

Todos os meus olhares são de adeus

Como um último olhar de um condenado!

(Poema da Circunstância)

Mas não, Poeta: ainda há quem lute para que isso não aconteça. Urbanistas, ambientalistas, sociólogos, líderes comunitários alertam e são presentes.  Os profissionais estudam, apresentam propostas; as lideranças trazem suas experiências, a defesa cidadã da vida urbana. Fez-se uma grande reunião, contestada judicialmente por diversos motivos. Os defensores da cidade urbanamente sadia, ambientalmente bem preparada foram vaiados. Alguma de suas sugestões será acolhida, examinada? A luta pela cidade como um corpo vivo continua. Tua placa será restaurada e Porto Alegre ainda será resgatada.

 

(*) Eng. Civil e Historiador

Logo ABES RS

Av. Júlio de Castilhos, 440, sala 131 (13º andar) - Centro - Porto Alegre - RS CEP: 90030-130

Telefone: (51) 99933.0700
E-mail: abes-rs@abes-rs.org.br

HORÁRIO DE FUNCIONAMENTO

Segunda a Sexta das 9:30 às 12:00 e 14:00 às 17:30